terça-feira, 19 de fevereiro de 2013


O poder paralelo que abateu o Papa

Sucessão de escândalos, intrigas e disputa de poder levou o pontífice à mais radical das decisões: deixar o trono de Pedro para enfraquecer os traidores

por Débora Crivellaro
“A face da Igreja, às vezes, é desfigurada. Penso em particular nos golpes contra a unidade da Igreja, as divisões no corpo eclesial. Por isso, Jesus denuncia a hipocrisia religiosa, o comportamento que deseja aparecer, os hábitos que procuram o aplauso e a aprovação...”
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A voz é fraca, instrumento de um homem fisicamente pequeno. Deveria sumir no ambiente imponente, construído para lembrar aos mortais a sua insignificância diante dos desígnios divinos. Mas do majestoso altar erigido sobre o local onde está o túmulo do apóstolo Pedro, fundador da Igreja Católica, ecoa uma mensagem retumbante. E com ela, o mirrado orador recupera sua grandeza. Dois dias depois de assombrar o mundo com seu pedido de renúncia, Bento XVI, o pontífice octogenário novamente surpreendia, ao sacramentar, em plena missa de Quarta-Feira de Cinzas, 13 de fevereiro, na monumental Basílica de São Pedro, em Roma, a existência de uma guerra de poder nas fileiras do Vaticano. Seu próprio pontificado seria uma vítima desse bíblico confronto.
Ainda assim, Joseph Ratzinger em nada lembrava o homem pálido, de olhar pesado e cansado dos últimos dias. Suas palavras decididas denunciaram o governo paralelo que insistia em se instalar dentro da Santa Sé. Com a boa condição física que demonstrou durante toda a cerimônia, revelou que a alegação oficial de falta de vigor físico não foi a razão para abdicar ao trono de Pedro. Mais do que um gesto de reconhecimento das suas próprias limitações, a renúncia foi um ato político. Isolado dentro do Vaticano, Bento XVI optou por sair para derrubar, junto com ele, seus traidores e, assim, tentar recompor a instituição. Na última celebração como papa na Basílica, ele mostrou que, às vésperas de despir-se das vestes que o tornam um ser quase divino, um representante de Deus na Terra, é um humano mais forte e lúcido do que se supunha – assim como é humana a vingança que seu gesto pode impor àqueles que o traíram.
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PROTESTO
Manifestantes pelas vítimas de abusos sexuais cometidos por sacerdotes,
em Los Angeles, neste mês: acusações contra a omissão de Bento XVI
O peso de sua retórica abalou os pilares do poder paralelo que agia à sua volta e fustigou as dezenas de car­deais presentes à celebração. “Ficamos sem palavras”, declarou o cardeal Giovanni Lajolo, estupefato logo após a cerimônia. Mas, certamente, as fortes declarações do sumo pontífice tiveram um destinatário preferencial: Tarcisio Bertone, secretário de Estado do Vaticano e segundo homem na hierarquia do atual pontificado. Amigo pessoal de Ratzinger, foi um dos religiosos que se tornaram mais poderosos quando o cardeal alemão foi empossado papa, em 2005. Em vez de aliado, o italiano se converteu em líder do processo de esvaziamento de poder que levou à renúncia de Bento XVI, uma possibilidade real para o religioso alemão já há alguns anos, asseguram pessoas próximas a ele, inclusive seu irmão mais velho, Georg.
O pontificado de Ratzinger começou a ruir quando seus assessores diretos passaram a boicotar suas iniciativas. Como seu projeto de “limpeza moral interna”, por exemplo. O alemão chegou ao posto máximo da Igreja Católica com a intenção de promover uma varredura nos casos de abusos sexuais cometidos por religiosos, que vieram à tona às centenas pelo mundo desde o pontificado de João Paulo II. Mas suas decisões de punir os envolvidos com rigidez eram simplesmente ignoradas ou postergadas por anos. Exausto por não conseguir implementar suas iniciativas, o papa chegou a declarar que “havia muita sujeira na Igreja”. À frente do grupo de assessores dissidentes estava o cardeal Bertone. Um dos episódios mais eloquentes do modus operandi de Bertone foi o afastamento do cardeal Carlo Maria Viganò da Cúria Romana. Viganò tentou romper a lei do silêncio imposta por uma verdadeira máfia que desviava verbas, fraudava licitações e tramava complôs contra o pontífice. Em uma carta entregue ao papa em outubro de 2011, ele denunciava o esquema de corrupção no Vaticano. Em represália, foi afastado de Roma e nomeado por Bertone como núncio apostólico nos Estados Unidos. Para evitar o confronto direto, Bento XVI optava por não questionar seu segundo na hierarquia. Até que perdeu o controle da situação.
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Se é possível precisar uma data em que o pontífice tomou a decisão extrema de se tornar o primeiro papa renunciante da era moderna – quase um tabu teológico para o 1,2 bilhão de católicos do mundo –, esta seria o dia 17 de dezembro de 2012. Na ocasião, três dos mais antigos cardeais – o espanhol Julián Herranz, o italiano Salvatore De Giorgi e o eslovaco Jozef Tomko – entregaram ao pontífice um novo relatório sobre o escândalo de vazamento de documentos oficiais do Vaticano, conhecido como Vatileaks. Após interrogar cerca de 30 pessoas sobre o caso, a seleta comissão informou ao religioso que havia na Cúria Romana uma grande resistência a mudanças e muitos obstáculos às ações pedidas pelo líder máximo para promover a transparência. Abatido, isolado e muito impressionado com o conteúdo dos relatórios, o alemão – que, como prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé no pontificado de João Paulo II, era conhecido como “rottweiller de Deus” – preferiu deixar o trono do apóstolo Pedro. “O ato do papa foi encorajado pela insensibilidade de uma cúria que, em vez de confortá-lo e apoiá-lo, apareceu, por diversos de seus expoentes, mais empenhada em jogos de poder e lutas fratricidas”, afirmou em editorial o respeitado jornal italiano Corriere della Sera.
Nove meses antes do derradeiro relatório, quando passava férias na sua residência de verão, em Castelgandolfo, os mesmos emissários o haviam visitado em segredo. Então, descortinaram para Ratzinger a intrincada rede de roubo e vazamentos para a imprensa de documentos oficiais do Vaticano, um dos maiores escândalos da história recente da Igreja Católica. O responsável pelo vazamento era identificado como “corvo” – mais tarde soube-se que se tratava de Paolo Gabriele, 46 anos, o mordomo que servia ao papa, próximo a ponto de ser o responsável por vesti-lo em seus aposentos pontifícios. O teor dos documentos lançava suspeitas sobre complôs na Cúria Romana para esconder supostos desvios de recursos e malversação de fundos da Igreja, e tinha como alvo o cardeal Bertone. Bento XVI se via, então, diante de sua via-crúcis pessoal.
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Descoberto, Gabriele confessou o crime, foi preso, julgado pela Justiça do Vaticano e condenado a 18 meses de prisão, em 8 de outubro de 2012. O mordomo afirmou que resolvera roubar e divulgar os documentos por julgar que o papa não estava sendo informado do que se passava de errado na Santa Sé. Então, na véspera de Natal, o pontífice octogenário caminhou até o local onde seu antigo assistente pessoal cumpria pena. Sentou-se ao seu lado por quinze minutos e lhe concedeu o perdão. Pessoas próximas dizem que, com esse gesto, Bento XVI sinalizou saber que Gabriele não agia sozinho, era apenas uma peça auxiliar numa rede que desestabilizou seu pontificado.
O cardeal Bertone, um dos personagens do Vatileaks, está presente em quase todos os episódios que levaram ao derradeiro ato de Bento XVI, na segunda-feira 11 – apesar de ser ingênuo pensar que ele é o único ator desse grupo dissidente, que agiu nos bastidores eclesiais para enfraquecer o poder papal. Em 2009, por exemplo, o pontífice alemão nomeou o financista Ettori Gotti Tedeschi, ligado ao movimento conservador Opus Dei, como presidente do Instituto para Obras de Religião (IOR), o Banco do Vaticano. O religioso havia decidido colocar em ordem, definitivamente, as finanças da Santa Sé. Tedeschi bem que tentou. Em 2012, elaborou uma documentação, na qual informava suas descobertas – contas escusas de políticos, construtores e altos funcionários do Estado. Até um chefe da máfia italiana havia colocado seu dinheiro nos cofres do IOR. Não demorou para que o financista de confiança do papa fosse destituído, no mesmo mês em que o mordomo Gabriele foi preso. A operação para derrubá-lo foi comandada por conselheiros do banco, com o aval de Bertone. Não satisfeitos em tirá-lo do cargo, elaboraram um dossiê que destruía Tedeschi pessoal e profissionalmente.
Se a poderosa e intrincada teia de intrigas formada por religiosos de alta patente é a razão para a situação de não governabilidade do 265º pontificado da história da Igreja Católica, a personalidade de Joseph Ratzinger explica a coragem para a renúncia. O maior teólogo da atua­lidade, pensador brilhante, de uma lucidez elogiada até por seus desafetos, o alemão sempre foi conhecido por ser extremamente racional e disciplinado. “Ratzinger é, sobretudo, um intelectual com uma sensibilidade especial para as ideias e a cultura e uma incapacidade e insatisfação para a gestão burocrática. E não é um homem midiático, ainda que se esforce para sê-lo”, afirma o vaticanista espanhol Juan Arias.
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Cardeal mais identificado com João Paulo II, o pontífice sempre teve consciên­cia de que foi eleito no calor da comoção da morte do polonês, quando ainda ecoavam os gritos de “Santo Súbito” na Praça de São Pedro. Intimidados, os cardeais votantes no conclave de 2005 preferiram, de alguma forma, manter a administração Wojtyla. Ao se retirar e forçar uma sucessão com o papa vivo, Bento XVI, exclui o componente emocional do luto, eximindo os votantes da continuidade. E ainda pode, como fez em seu discurso de renúncia e na homilia de Cinzas, sugerir pistas de como deveria ser seu substituto – mais novo e com perfil administrador (portanto, menos erudito e introspectivo, como ele próprio). Além de alguém que promova a “renovação verdadeira” na Igreja, algo como um Concílio Vaticano III, como conclamou num encontro com sacerdotes da Diocese de Roma, na quinta-feira 14.
Só um homem em pleno vigor de suas forças poderia tomar uma decisão tão revolucionária e enfrentar acusações como a do cardeal Stanislaw Dziwisz, ex-secretário de João Paulo II, autor da frase “da cruz não se desce” sobre a renúncia. Certamente, ao dizer isso, o cardeal polonês se lembrou de uma entrevista dada por Ratzinger a uma tevê italiana, durante o calvário de João Paulo II, que agonizou diante de seus fiéis. Na ocasião, o então prefeito para a Congregação da Doutrina da Fé afirmou categoricamente que o papa não podia renunciar. “O Senhor é que dá a alguém a responsabilidade de ser papa. Não foram os cardeais que fizeram dele um papa, mas, sim, uma intervenção divina.” Ao proferir a frase que foi tão replicada nas redes sociais, Dziwisz pode ter pensado por que agora o religioso alemão havia mudado de ideia. Essa foi apenas mais uma censura sofrida ao longo de seu pontificado. Bento XVI foi duramente criticado por muçulmanos, que chegaram a compará-lo a Hitler, por exemplo. Também foi censurado quando associou o uso de camisinha ao vírus HIV na África. E sai de cena criticado pelas associações de vítimas de abusos sexuais cometidos por sacerdotes, que apesar de reconhecerem que ele ousou tocar na ferida e pedir desculpas publicamente, não o perdoam por não ter conseguido pôr fim aos casos.
A pontuar essa sequência galopante de disputas internas, escândalos e polêmicas está um religioso que já no seu primeiro discurso como papa combateu o que chamou de “ditadura do relativismo” da atualidade, sempre fez questão de deixar claro que prefere poucos, mas bons católicos e defendeu ferrenhamente a tradição, a doutrina e a moral cristãs, sem a mudança de um versículo sequer. Diante dessa política de gestão, a Igreja foi perdendo fiéis, principalmente na Europa e nas Américas. Mas esse, agora, é um desafio para o próximo papa. A voz frágil de Bento XVI, que ecoou como um grito ensurdecedor na Basílica de São Pedro na quarta-feira 13, tamanha a gravidade de seu discurso, já deu o seu recado.

Conclave contra o relógio

Mais do que eleger um novo líder, os cardeais se reunirão para encontrar alguém capaz de enfrentar, com urgência, os fantasmas que afastam fiéis do catolicismo

por Débora Crivellaro
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CHOQUE
Cardeais conversam após a reunião da segunda-feira 11,
em que Bento XVI anunciou a surpreendente renúncia
Os 118 cardeais que se preparam para participar, a partir do dia 15 de março, do conclave que elegerá o 266o. papa da história, não têm dúvida. Estão diante de um desafio muito maior do que simplesmente escolher o líder máximo da religião mais influente do mundo ocidental e de uma legião de 1,2 bilhão de fiéis. Com a renúncia, e as desconcertantes declarações de Bento XVI, que expôs as chagas e mazelas do Vaticano em público, ainda pulsantes, os religiosos têm em suas mãos a possibilidade de corrigir os rumos da Igreja e colocar a barca de Pedro novamente em águas calmas. Resta saber qual seria o perfil ideal de pontífice para este momento tão delicado – dos católicos e do mundo.
Diante de momento tão excepcional, os cardeais já se movimentam em busca de alianças para definir estratégias para o conclave, num ambiente de efervescência política – por mais que digam não fazê-lo. Vaticanistas italianos já detectaram que dois dos mais poderosos cardeais de Roma, o secretário de Estado Tarcisio Bertone e Angelo Sodano, que ocupou esse cargo durante o pontificado de João Paulo II 
e atualmente é o decano dos cardeais, já iniciaram contatos com os eleitores mais estratégicos. Não por coincidência, Bertone e Sodano são desafetos. Mas ambos são igualmente influentes e ocuparão postos-chave na eleição do novo papa. Bertone está, aparentemente, em desvantagem, pois sai do episódio da renúncia como mentor do governo paralelo que desestabilizou e isolou Bento XVI, um mártir nas mãos de seus detratores, para a opinião pública. “Esses 118 cardeais chegarão a Roma para eleger o sucessor de Pedro influenciados pela inesperada renúncia e ansiosos para nomear uma pessoa que não seja mais assediada e humilhada, como Bento XVI”, diz o escritor espanhol Juan Arias, experiente vaticanista.
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De qualquer forma, se haverá embate e disputa interna entre grupos de cardeais, ele será pouco ideológico. Quase não há mais religiosos progressistas, que interpretam o Evangelho à luz das questões sociais, no cardinalato católico. E isso muito se deve aos pontificados dos conservadores Karol Wojtyla e Joseph Ratzinger, que procuraram eleger homens à sua imagem e semelhança. Especialistas em Igreja Católica avaliam que os votantes devem caminhar para um candidato mais ao centro, com um perfil administrativo. Um religioso na casa dos 70 anos – não tão jovem quanto João Paulo II, que assumiu aos 58 anos e permaneceu papa por 27 anos, nem tão idoso quanto Bento XVI, que chegou ao trono de Pedro ao 78 e alegou abdicar por falta de vigor físico. Diante do esfacelamento interno da igreja, a maioria garante que o novo líder será um europeu. Mais do que isso, um italiano. Alguém que domine com facilidade a complicada engrenagem da Cúria Romana e saiba lamber as feridas abertas da instituição milenar.
A lógica numérica reforça essa análise. Os europeus têm o maior poderio eleitoral, com 62 dos 117 eleitores, mais da metade. Desses, 28 são italianos, quase um quarto de todo o Colégio Cardinalício. Segundo o vaticanista Marco Politi, a super-representação da Itália não significa que todos os cardeais desse país votarão em um conterrâneo. “No passado, eram os estrangeiros que pediam que o papa fosse um italiano”, afirma, lembrando que por mais de cinco séculos, até a eleição do polonês Wojtyla, todos os papas eram da Itália.
Envolvidos em conversas, debates e discussões, os cardeais votantes também terão de conviver com a sombra de Joseph Ratzinger no conclave. Muitos apostam que o pontífice alemão quis anunciar sua abdicação com semanas de antecedência para ter tempo de influenciar, ainda como líder incontestável da Santa Sé, na votação que irá eleger seu sucessor. Nem precisava. Não foram poucas as mensagens – subliminares ou não – que passou com sua renúncia. A primeira delas foi que, ao sair, ele promoveu uma grande ruptura na Igreja Católica. Interromper um pontificado de própria vontade, numa iniciativa inédita na história moderna, foi como dizer: a situação precisa mudar a partir daqui. Essa atitude, ao mesmo tempo tão humana e tão elevada, pode inspirar alguns cardeais eleitores a correr riscos, elegendo alguém que possa efetivamente fazer algo novo, segundo John L. Allen Jr., da National Catholic Reporter.
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No discurso de sua renúncia, na segunda-feira 11, Bento XVI disse claramente que a Igreja e seus novos problemas precisam da força de um papa mais físico. Um recado claro para eleger um homem jovem, o que, nos padrões do Vaticano, seria alguém em torno dos 68 anos. E na quinta-feira 14, durante um encontro com sacerdotes na Diocese de Roma, o pontífice octogenário disse que é preciso haver uma renovação verdadeira na Igreja para evitar a perda de fiéis e que ainda há muito a fazer. Mais um recado para o conclave e o próximo papa. 
O cajado de Ratzinger também está depositado na composição do Colégio de Cardeais. Dos 118 eleitores, ele nomeou 67 – a maioria conservadores com um viés pró-europeu. Em janeiro de 2012, por exemplo, ele designou 22 novos cardeais, quase todos autoridades europeias no Vaticano, sem experiência pastoral. Segundo John Allen, pelo menos alguns deles podem se sentir pressionados a não fazer algo que possa ser percebido como um repúdio ao papado de Bento XVI. “Como isso poderá ser traduzido em termos de votos, não está de todo claro, mas é uma peça do quebra-cabeça a considerar.” O historiador Andréa Tornieli é mais explícito. “É claro que os cardeais serão menos livres no conclave com Ratzinger ainda vivo.” Mas o fato é que seu sucessor não poderá evitar a reforma do Vaticano a partir do zero.
Fotos: Osservatore Romano/Reuters; fotos: Robert Stolarik/The New York Times; Olivier MORIN/AFP PHOTO

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Uma janela para mudar o mundo da Igreja

Por que a renúncia de Bento XVI abre uma oportunidade única para a escolha de um papa do Terceiro Mundo, aproximando o Vaticano de seus mais numerosos rebanhos

por João Loes e Rodrigo Cardoso
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Em maio de 2007, o papa Bento 16 fez sua única visita ao Brasil;
relembre os principais momentos do evento


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DECISÃO RADICAL
No meio de um pesado jogo de poder, com escândalos e traições, Bento XVI
renuncia e deixa o trono de Pedro, que poderá ser ocupado por um papa do Terceiro Mundo
O gesto humano e inesperado do papa Bento XVI, de abdicar do trono do apóstolo Pedro, levará anos para ser integralmente compreendido e seus reflexos para a fé cristã decifrados. Ao marcar o fim do seu papado, iniciado em 2005, para o dia 28 de fevereiro, o pontífice lançou novos desafios para a instituição milenar. Com a saída de um papa ainda vivo e a eleição de outro, a Igreja Católica irá experimentar caminhos até então desconhecidos, cheios de dúvidas e incertezas. A última vez que isso aconteceu foi há seis séculos. O catolicismo não vivia um momento tão crucial na sua história desde os anos 1960, no Concílio Vaticano II, que modernizou a Igreja e a aproximou dos fiéis. “A renúncia do papa Bento XVI é a queda do muro de Berlim da Igreja Católica”, pontua o teólogo Jorge Cláudio Ribeiro, da Pontifícia Universidade Católica (PUC), de São Paulo.
A saída de cena do papa alemão, que sucumbiu aos escândalos, intrigas e disputas internas de poder no Vaticano, abre espaço para uma possível surpresa na escolha do novo pontífice, mesmo numa instituição apegada à tradição e profundamente conservadora, pois a atitude de Bento XVI escancarou de vez o estado de coma do catolicismo. Na Europa, a religião sangra por causa da secularização da população. Ela cresce em continentes como África e Ásia e mantém grande representatividade em países da América Latina. O futuro da religião não passa pelo Velho Continente, onde há crise de vocações e um número cada vez menor de fiéis. Sua força está nas novas fronteiras da fé católica e, ainda, no peso da população latino-americana, que, distante da voz de Roma, tem encontrado mais conforto nas palavras proferidas pelos evangélicos. Por isso, esse cenário levanta a questão: depois de um papa alemão e de um polonês, não seria a hora de um religioso do Terceiro Mundo ser elevado ao cargo mais alto do Vaticano? Não seria esse um caminho para aproximar a cúpula da Igreja da maioria do seu rebanho ou de trazê-la para onde ele mais pulsa? “As estatísticas fundamentam a pretensão em torno de um papa com esse perfil: 52% dos católicos estão nos países periféricos”, diz o teólogo Leonardo Boff. “O cristianismo é uma religião do Terceiro Mundo que teve, um dia, origem no Primeiro. Esse fato cria a plataforma para reivindicarmos a presença de um papa que represente a maioria dos cristãos.”
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Ex-frade franciscano, interrogado por Ratzinger e punido nos anos 1980 pela Santa Sé por defender ideias contrárias à Igreja em um livro, Boff não fala sozinho. Papáveis como o cardeal Peter Turkson, de Gana, e o cardeal venezuelano Jorge Urosa comungam dessa visão. Para Turkson, que diz estar pronto para o cargo se assim for a vontade de Deus, esse seria o momento certo para a eleição de um pontífice do mundo em desenvolvimento. “Igrejas jovens na África e na Ásia se tornaram sólidas o bastante para produzir clérigos maduros e capazes de exercer a liderança no Vaticano”, defende o africano. O cardeal Urosa, por sua vez, afirmou esperar que “o próximo papa seja da América Latina, que abriga 40% dos católicos no mundo”. O quadro do colégio cardinalício, porém, talhado com apuro por Bento XVI, acena para a continuidade do eurocentrismo dentro da Cúria Romana. Dos 118 cardeais aptos a votar, 62 são europeus – desses, 28 são italianos. No último conclave, em 2005, os europeus eram 58 – 20 dos quais italianos – de um total de 117 cardeais.
Com esse viés europeu perpetuado na Santa Sé, a Igreja tem se mostrado mais preocupada em retomar as raízes cristãs na Europa do que em aprofundar o crescimento do catolicismo no Terceiro Mundo. A diminuição do número de cardeais brasileiros em Roma reflete essa tendência. O Brasil, país com maior número de católicos do planeta, ocupa cinco cadeiras cardinalícias com direito a voto na escolha de um pontífice, atualmente. Já foram oito, nos anos 1970. João Braz de Aviz, logo que recebeu o barrete de cardeal no ano passado, questionou o eurocentrismo religioso: “Do ponto de vista econômico ou político, mas também dentro da Igreja, por quanto tempo é que seremos liderados pela Europa e pelos Estados Unidos?” Na atual conjuntura mundial, principalmente em termos financeiros, a Europa não é referência. A crise assola nações como a Espanha, que fechou 2012 com 25% da população economicamente ativa desempregada, e a França, onde o PIB não tem crescido.
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NOVOS TEMPOS
Na semana passada, o papa denunciou desmandos na cúpula da Igreja e pediu renovação.
O catolicismo está em crise na Europa, mas cresce no Terceiro Mundo. Na África, a proporção
de católicos na população saltou de 6,8% em 1970 para 15,2% em 2012
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Frear o eurocentrismo religioso não é tarefa fácil, mesmo diante do fato de que os próprios europeus olham o cristianismo pelas costas. A doutrina religiosa ajudou a moldar a cultura ocidental, mas não é mais vista como uma fonte de sentido para a vida. Se a hegemonia – ou seja, quem orienta as ideias – do catolicismo ainda subsiste no Velho Mundo, a sua vitalidade está na Ásia, apontam especialistas como o padre e teólogo jesuíta João Batista Libânio. Em países como a Índia, só para citar um exemplo, recentemente houve cerca de 500 candidatos a jesuítas em um único ano – algo que no Brasil demoraria décadas e décadas para ocorrer. “A Igreja, hoje, age como uma instituição provinciana porque insiste em tratar questões locais como universais”, diz o padre José Oscar Beozzo, especialista em história do catolicismo, teólogo e coordenador-geral do Centro Ecumênico de Serviços à Evangelização e Educação Popular (Cesep).
É até genuína a preocupação de Roma com a agenda europeia, focada quase que exclusivamente no esforço para estancar a hemorragia de fiéis. Mas ignorar as questões que afligem a Igreja na África, por exemplo, que luta para estabelecer um diálogo entre a religião e as culturas locais, ou nos Estados Unidos, que se desdobra para enfrentar os escândalos de pedofilia, é uma temeridade. Hoje, segundo o World Christian Database, base de dados do Seminário Gordon-Conwell, nos Estados Unidos, são continentes como o africano que registram o maior crescimento do catolicismo no mundo. Lá, entre 1970 e 2012, a proporção de católicos na população saltou de 6,8% para 15,2%. No mesmo período, na Europa, caiu de 38,5% para 23,7%.
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Se, ao olhar dos cardeais presentes no conclave, a análise da conjuntura mundial e da Igreja apontar para um pastor originário de nações não europeias, o catolicismo estará se adequando à fase atual da história. A globalização é também um fenômeno antropológico – e não apenas econômico –, pelo qual culturas e povos se encontram, trocam valores e convivem. Estaria a Igreja, então, mais próxima da realidade. Por outro lado, se a prioridade for redescobrir a força cristã em processo de desaparecimento no Velho Mundo, muito provavelmente um “santo” de casa, um europeu, seja conclamado papa.
“E talvez penda para um papa italiano. É um povo que foi espremido por várias culturas e aprendeu a jogar em todos os times simultaneamente”, afirma o jesuíta Libânio, para quem na crise atual um latino-americano, um africano ou um asiático dificilmente terão credibilidade e capacidade política para essa volta às raízes. Bento XVI, como ex-papa vivo, estará assistindo a tudo da residência de verão do Vaticano, em Castelgandolfo, até que a reforma de sua residência definitiva em um monastério dentro da Santa Sé fique pronta.
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Fotos: AP Photo/Alessandro Bianchi, Pool e Finbarr O’Reilly/Reuters

Fotos: David McNew e Tony Gentile/REUTERS; FILIPPO MONTEFORTE/TOPSHOTS/AFP PHOTO

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