quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013


O conclave já começou

Diante de uma igreja desfigurada por denúncias de uma rede homossexual e de corrupção no Vaticano, e prevendo uma das eleições mais complicadas da história, cardeais se reúnem para costurar alianças

Débora Crivellaro
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RITOS FINAIS
Assistentes carregam a poltrona papal durante
celebração de Bento XVI na Basílica de São Pedro
Procura-se um exímio gerenciador de crises, dotado de inquestionável erudição, com coragem para implementar reformas, visão global, capacidade de comunicação, carisma, e uma profundidade espiritual irradiantes. Essa tem sido a obsessão dos príncipes do Vaticano, como são conhecidos os cardeais católicos, que desde a renúncia de Bento XVI têm a bíblica missão de escolher quem ocupará o trono de Pedro neste período turbulento da milenar instituição. E a situação só se agrava com o passar dos dias. Na quinta-feira 21, detalhes sobre o dossiê Vatileaks, que o papa decidiu apresentar para os cardeais eleitores antes de deixar o cargo oficialmente, mostraram uma rede de prostituição homossexual e um poderoso esquema de corrupção e desvio de dinheiro dentro da Santa Sé. Pressionados pela sucessão dos acontecimentos que destroçam a imagem dos católicos, os religiosos se reúnem em encontros privados para tentar influenciar o voto ou, simplesmente, discutir, quem, dentre os 117 do Colégio de Cardeais, apresenta as características necessárias para ser o 266º papa da história. Por mais que invoquem o Espírito Santo neste momento, e digam que ele é o responsável pela escolha do líder dos cristãos no mundo, os cardeais sabem: será necessário muita política e diplomacia para se chegar a um nome que consiga reconstruir as almas divididas da Igreja.
Para evitar um conclave muito longo, mais um desgaste para a Igreja Católica, tão açodada por escândalos nos últimos anos e nos holofotes da humanidade desde que Bento XVI desocupou a vaga de Pedro como se ela fosse um assento no parlamento, desmistificando, assim, seu posto, os cardeais já vivem a atmosfera do conclave. O grande problema é que há uma luta fratricida na Cúria Romana, que a renúncia papal só fez acirrar. Grupos rivais, principalmente entre os 28 poderosos cardeais italianos, tentam emplacar seus nomes, numa campanha eleitoral que permite, inclusive, a desmoralização velada, discreta, e nada cristã, dos oponentes. E para conferir ainda mais dramaticidade ao intrincado quadro da sucessão papal atual, está a figura de Joseph Ratzinger, cuja morte institucional após o dia 28 de fevereiro tem sido muito questionada – afinal, o religioso alemão estará a poucos quilômetros do Vaticano quando os cardeais estiverem escolhendo seu substituto. Cada palavra que Bento XVI tem proferido desde que renunciou, e pelos próximos dias, tem sido e será interpretada como uma mensagem para o conclave. Como no Angelus de domingo 17, quando falou sobre aqueles que “instrumentalizam Deus para seus próprios fins, dando mais importância ao sucesso...”
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MISSÃO
Cardeais com as vestes roxas da Quaresma: período de reflexão
para os príncipes do Vaticano, que irão escolher o novo papa
Discretos, os príncipes do Vaticano se encontravam em apartamentos particulares e pequenos restaurantes de Roma para eletrizantes conchavos. A partir da segunda-feira 18, as conversas veladas passaram a ser intercaladas pelos exercícios espirituais anuais da Quaresma, realizados na capela Redemptoris Mater, no Palácio Apostólico, com a liderança do cardeal papável Gianfranco Ravasi e a presença de um concentrado e aparentemente relaxado Bento XVI . A expectativa é que praticamente todos os 117 cardeais eleitores estejam em Roma no dia 28 de fevereiro, na despedida do pontífice alemão. Mais uma justificativa para a mudança de regras para a antecipação do conclave, aventada oficialmente pelo porta-voz da Santa Sé Federico Lombardi (leia na pag. 79).
A pressa de Ratzinger é grande porque a crise só se aprofunda no reino da Santa Sé, com intrigas dignas das cortes renascentistas. Na quinta-feira 21, o jornal “La Repubblica” publicou mais detalhes acerca do relatório secreto entregue por três cardeais de confiança de Bento XVI – o espanhol Julián Herranz, o italiano Salvatore De Giorgi e o eslovaco Jozef Tomko – no dia 17 de dezembro de 2012 sobre o escândalo de vazamento de documentos oficiais do Vaticano, conhecido como Vatileaks, que teria sido determinante para a decisão da renúncia. O periódico desfia detalhes do dossiê de 300 páginas, divididos em dois volumes encadernados em couro vermelho, que descreve uma teia de corrupção, sexo e tráfico de influências por entre as colunas da Santa Sé. Seu conteúdo abateu o religioso alemão de tal forma – foi a primeira vez que a palavra homossexualidade foi pronunciada dentro dos aposentos pontifícios – que ele teria dito: “Este documento será entregue ao próximo papa, que deverá ser bastante forte, jovem e santo para poder enfrentar o trabalho que o espera.”
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O dossiê revelou uma rede de prostituição de jovens seminaristas, descoberta em 2010. No centro, o presidente do Conselho Nacional Italiano de Obras Públicas, Angelo Balducci, que teve o telefone grampeado por suspeita de corrupção. Foi descoberta uma conexão entre ele e o nigeriano Thiomas Eheim, membro do coro da Basílica de São Pedro, que seria o agenciador de encontros que aconteciam numa sauna, num centro estético, numa residência nos arredores de Roma e até dentro do Vaticano. Numa das ligações interceptadas, o nigeriano disse a Balducci: “Só digo que ele tem dois metros de altura, pesa 97 quilos, tem 33 anos e é completamente ativo.” Parte dos encontros homossexuais também se dava numa residência universitária na capital italiana onde vivia Marco Simeon, 33 anos, diretor da TV Rai Vaticano. Na semana da renúncia do papa, o jornal italiano “La Stampa” já havia falado sobre Simeon, mas como um exemplo do ajuste de contas que teria sido deflagrado na Cúria a partir da demissão papal. O diretor da RAI seria protegido de Bertone e considerado intocável durante a atual administração, mas foi demitido dias após o anúncio de Bento XVI. Resta saber se por causa da rede gay ou pelo enfraquecimento de Bertone. O relatório denuncia a existência, ainda, de um “lobby gay”, uma “rede transversal unida pela orientação sexual dentro do Vaticano”, e religiosos homossexuais chantageados por causa da vida dupla. No documento, também é apresentado um grupo especializado em montar e desmontar carreiras na Cúria e um terceiro, cujo objetivo era usar grandes somas de dinheiro do Banco do Vaticano para seus próprios interesses. O dossiê deve ser determinante para a eleição do próximo papa, uma vez que os eleitores terão acesso a ele.
Diante de uma Cúria esfacelada, e um papa clamando por mudança e renovação, o lobby dos italianos, incontestavelmente os mais poderosos, em número (são 28 no Colégio de Cardeais) e influência territorial, pode perder força, segundo vaticanistas, justamente por eles simbolizarem o status quo. Eles são divididos em facções muito bem delimitadas, que não se unem por ideologia ou visões afins da Igreja, mas por relações pessoais e redes de clientelismo, segundo o escritor e vaticanista John Allen Jr., da National Catholic Reporter. Há o grupo do secretário de Estado Tarcisio Bertone, que apoia Gianfranco Ravasi, 70 anos, prefeito do Conselho Pontifício para a Cultura, um dos mais fortes candidatos – não esquecendo do ditado mais falado no momento: “Quem entra papa no conclave, sai cardeal.” Há os círculos em torno de dois inimigos de Bertone, os também poderosos Angelo Sodano, decano dos cardeais, e Angelo Bagnasco, presidente da Conferência Episcopal Italiana. Além daqueles que seguem o antecessor de Bagnasco, o conservador Camillo Ruini. O favorito de Bento XVI é considerado um míni-Ratzinger, com um toque mais popular: Angelo Scola, o influente arcebispo de Milão, que tem estado em evidência demais numa campanha em que muita publicidade pode significar o beijo da morte.
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A atmosfera pré-conclave tem lembrado muito a segunda eleição de 1978, após a inesperada morte de João Paulo I, um mês depois de tomar posse, afirma o vaticanista italiano Giorgio Bernardelli. Na época, depois de várias rodadas de votação, os cardeais continuavam num impasse, pois vários eram contrários à nomeação do arcebispo de Gênova, Giuseppe Siri, como papa. Foi essa conjuntura de divisão e ansiedade que fez florescer e consolidar o desconhecido Karol Wojtyla. Isso não necessariamente fortalece a tese de um papa da América Latina ou da África, mas de um líder com coragem para fazer as mudanças necessárias e expurgar o rosário de pecados da Santa Madre.
Fotos: Franco Origlia/Getty Images; GABRIEL BOUYS/AFP PHOTO

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